Pesquisa, investimento e sinergia entre produtores: como a Campanha Gaúcha agregou valor à região fronteiriça por meio de vinhos finos
A região da Campanha gaúcha está localizada no extremo sul do país, em áreas fronteiriças com Uruguai e também com a Argentina. Por séculos, a principal atividade econômica sempre foi agropecuária. Mas, a região descobriu uma nova vocação e tem se destacado no cenário nacional e internacional: o setor vitivinícola.
A história de desenvolvimento do setor na região, que sempre foi mais conhecida pela produção de grãos como arroz e soja e pela pecuária, passa por, basicamente, 3 períodos: A primeira vinícola registrada no Brasil é da cidade de Candiota, em 1880, a J. Marimon & Filhos. Também houve produção de uva e vinho em Uruguaiana e a imigração italiana reforçou a produção. Aos poucos, foi-se abandonando a vitivinicultura. Já nos anos de 1970, a Vinícola Almadén instalou-se na região. Um vitivinicultor da Universidade de Davis, na Califórnia, procurava locais ideais pelo mundo para a plantação de uvas viníferas e, junto com técnicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) escolheu a região da Campanha (hoje, a Almadén pertence ao grupo Miolo). Já no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 é que a maior parte das vinícolas foi criada: estudos da Embrapa Uva e Vinhos e da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) apontavam a região e também determinados tipos de uvas com as características ideais para a produção.
Pedro Candelária, atual Presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, destacou: “A Embrapa Uva e Vinhos, a Unipampa e demais universidades, os produtores, enólogos e as pessoas daqui se uniram para formar a Associação. Todos os resultados que temos hoje são fruto do trabalho realizado de forma conjunta”.
Outro acontecimento importante para a região foi a conquista do selo de Indicação de Procedência (IP) Campanha Gaúcha, conquistado em 2020. Segundo o que explica o Engenheiro Agrônomo e atual Diretor do Conselho Regulador da IP na Associação, Afrânio Moraes Filho, atualmente, são 36 variedades de uvas viníferas catalogadas. Das uvas tintas, as mais cultivadas na região são a Merlot, Tannat e Cabernet Sauvignon. Das brancas, são a Chardonnay, Sauvignon Blanc, Gewurztraminer e Riesling. “A conquista da IP identifica a região como única e forma um efeito cascata: beneficia o turismo, a hotelaria, a gastronomia, o artesanato, enfim, vários outros setores se desenvolvem”. Afrânio explica como acontecem as validações da IP, realizadas anualmente. “São feitas 4 avaliações sensoriais por ano, para cada tipo de vinho, junto a técnicos e enólogos da Unipampa. Os vinhos são degustados e os profissionais avaliam se eles estão com as características que nós descrevemos na IP. Se for recomendado, os produtores podem utilizar o selo”. Segundo Afrânio, desde 2020 já foram mais de 5 milhões de litros de vinho avaliados e recomendados. “São mais de 7 milhões de garrafas. Na última avaliação tivemos 20 amostras. A Campanha Gaúcha tem quase 30% dos vinhos finos do Brasil”.
Hoje, são 19 vinícolas associadas. Das bebidas, cada vez mais famosas e com qualidade reconhecida, destacam-se os espumantes, vinhos tintos, vinhos brancos, vinhos nobres e vinhos licorosos. A vitivinicultura também tem promovido a expansão de outro setor: o enoturismo, com a “Rota Vinhas e Vinhos”. A região dos vinhos tem 4,1 milhões de hectares e se destaca também pela gastronomia e pelas paisagens. A Presidente da Associação do Pampa Gaúcho de Turismo (APATUR), Clori Peruzzo, ressaltou que o turismo é outra potencialidade da região que está em plena expansão. “Essa diversificação trouxe muitas riquezas para a região. Além do vinho, em que hoje temos 10 espaços de vinícolas com visitação de turistas, temos a produção de azeite, em que também estamos criando um roteiro. Com relação aos hotéis, observamos investimentos de pequenos e grandes grupos e inclusive com hospedagens diferenciadas, como pousadas rurais”. Clori explica ainda que em relação aos visitantes, quase a totalidade são brasileiros. “Ainda temos alguns visitantes do Uruguai, da Argentina ou de outros países, mas a maior parte são brasileiros”.
Todos estes movimentos, indutores ao desenvolvimento de atividades econômicas e sustentáveis em regiões de fronteira, são exemplos de como as potencialidades de cada local podem ser destacadas. Luciano Stremel Barros, Presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF), reforça: “É muito louvável o empenho dos produtores, empresários e demais trabalhadores e das associações de produtores em fortalecer a expansão da Campanha Gaúcha, uma área de fronteira cuja produção de vinhos finos é um dos principais cases de desenvolvimento do país”.
Desafios para a região
Todo este cenário de diversificação de culturas, crescimento econômico e expansão das atividades da região fronteiriça também apresenta desafios. Os produtores têm sinalizado a preocupação quanto à ocorrência indiscriminada de deriva de agrotóxicos hormonais, principalmente aqueles com princípio ativo 2,4-D, utilizado em áreas de plantio de lavouras e pastagens. Uma das características deste composto químico é sua extrema volatilidade e deslocamento, ou seja, se espalha facilmente além da área de aplicação em razão do vento, calor, umidade, técnicas inadequadas de aplicação, entre outros fatores. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em resposta a e-mail enviado pelo IDESF, já existem restrições no uso do produto. “É exigida a utilização de tecnologia de redução de deriva nas culturas de café e cana-de-açúcar de pelo menos 55% para aplicação costal (…) para os residentes em áreas próximas de plantações: obrigatoriedade de redução da deriva, ou seja, uso de equipamento ou alteração na formulação que altere a dispersão do produto para fora da lavoura”.
O produtor Valter Potter, Ex-presidente da Associação e Sócio-proprietário da Vinícola Guatambu, afirma que além do prejuízo na produção de uvas, tal problema tem afetado a plantação de novos vinhedos. “Temos de 15% a 30% de prejuízo de produção por ano na Campanha Gaúcha, o que representa 1 milhão de quilos de uva. Isso tem que ser resolvido. Administrativamente nós esgotamos todas as instâncias. O Estado criou normativos para a utilização do 2,4-D em determinados municípios da Campanha Gaúcha, mas funcionam só no papel. Na prática, seguimos tendo deriva todos os anos. Em Jaguari já estão com prejuízo de 40% de perda de parreiras e muitos têm desistido da atividade”.
Não são somente os parreirais que são afetados pela substância. Em carta enviada à Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do Estado do Rio
Grande do Sul em maio deste ano, a União Brasileira de Viticultura (UVIBRA) junto a outras 11 organizações, solicita a suspensão do uso e aplicação dos herbicidas hormonais com
princípio ativo 2,4-D no estado, “até que se estabeleça zona de exclusão de uso ou implemente sistema seguro e efetivo e monitoramento e fiscalização
integral do seu uso e aplicação, sob pena de inviabilizar definitivamente as culturas
sensíveis, e prejudicar ainda mais a produção de quem vem acumulando perdas
decorrentes das derivas”.
A carta destaca outras culturas sensíveis e afetadas pelo 2,4-D, como maçã, hortaliças, nogueiras, oliveiras e ervas-mate, dentre outros. A Unipampa também fez um posicionamento público sobre tal problemática e os produtores têm buscado soluções. Valter explica que depois de esgotadas todas as possibilidades de negociação e vendo as perdas de produção aumentarem ano após ano, foi feita a judicialização do processo. “Foi ajuizada uma ação civil pública pela Associação dos Vinhos da Campanha Gaúcha e pela Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (Agapomi), em que o Estado do Rio Grande do Sul foi acionado juridicamente solicitando a suspensão das aplicações dos herbicidas hormonais com princípio ativo 2,4-D no estado enquanto não forem tomadas medidas efetivas para evitar a deriva”.
Valter também destacou as conquistas realizadas nos últimos anos e falou sobre as expectativas em melhorar a infraestrutura (aeroportos, estradas, mais hotéis e restaurantes na região). “Precisamos de incentivos para melhorias de infraestrutura e acesso dos turistas”.
Como outros desafios, ele também citou o descaminho de vinhos, já noticiado pelo IDESF, e a carga tributária do Brasil. Em levantamento realizado pelo Instituto, a média brasileira de tributação para vinhos e espumantes é de 47%. Mas, há estados que chegam a pagar 64% em impostos.
Foto de capa: Dandy Marchetti / www.vinhosdacampanha.com.br
Texto: Eloiza Dal Pozzo